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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

TRÊS TEXTOS EXECUTADOS DURANTE O ANO SABÁTICO: poema III


arquiteturas do acaso

quando quase criança entre
tinha-se com palíndromos ava
lovara acaso seus desastres não
avançavam já léguas sua
arquitetura imprevista?, e
mesmo agora no esforço des
atento de agarrar-se a
quantos tomos de civil sub
existem rumores de roldanas
e tilintar de andaimes. ou
acaso se pode prever o ritmo
sonolento se no centro da
trama inverte-se insuspeito o pó
em sangue, o sangue-em-pó?
Acaso? e acaso alguém
sabe dos gestos que des
percebidos se instalam entre os
esqueletos dos dias
até escarnecerem grafite ao
alcance da voz? não
não se fabricam desertos entre
a vertigem dos prédios não se
parem flautas nas entranhas
citadinas. e seu pendor para
engenharia nunca foi muito:
então fizera-se falsária dos im
perceptíveis arquejos ainda que
frequentemente aparada de
brocas e martelos.

TRÊS TEXTOS EXECUTADOS DURANTE O ANO SABÁTICO: poema II



uma genealogia by bartleby

impossível prever a cifra de
acidentes que um barteby
é capaz de desencadear.
numa curva, ponte ou
abismo: rompe-se perplexo!
o fio entre
dia e iminência de aurora, e as
horas apenas excedem a geografia
dos relógios. agora mesmo marcel
estaca para (lânguido) assistir pássaros
regurgitando das árvores. a lua
desenha a porta de casa e ele
ainda nem sabe, mas a urdidura
semeou-lhe o dente. o primeiro.
impossível calcular o momento:
enquanto despe os tomos de
contabilidade, a margem de erro
já avança além das fronteiras,
o horizonte.
ante o prato de ovos fritos marcel
não sabe, e mesmo agora lhe é
impossível
medir a espessura da fome.



P.S.: O quadro acima se itutla The poor poet, de autoria do alemão Carl Spitzweg
(1808- 1885)

TRÊS TEXTOS EXECUTADOS DURANTE O ANO SABÁTICO: poema I

A dobra

olhando-a (nesse instante)
pelo retrovisor. ela, distante
mil léguas. a jean-paul
ocorre (súbito!) que essa
dobra eu-e-outrem é
mesmo o insuperável anula
mento. mais:
(se) a mesma dobra esteve
(sempre?) ocultamente
palpável no des
dobra
mento de Si:

aqui, e simples
mente: Jean-Paul decalca-se
cristalino, na superfície d’a
manhã.

O ANO SABÁTICO

A longa pausa entre a postagem anterior e essa mais recente é o resultado, dentre outros motivos,do meu convencimento, ainda que temporário, de que eu não sei escrever ou de que não há nada a ser dito que não o tenha sido por gente infintitamente melhor do que eu.
Mas então eis que hoje, numa das minhas corriqueiras crisisnhas existenciais, vem à superfície, trazido não sei por que acaso, o trecho de um livro lido há tanto tempo que eu imaginava que todas as suas impressões, na época da leitura tão intensas, tivessem esmaecido sob o tumulto de impressões e lembranças mais recentes (o que mais uma vez mostra que o Proust tem razão quando fala da memória involuntária, aquela memória que, por um objeto ou sensação insuspeita, pode de repente desenrolar o torvelinho das nossas lembranaças mais recônditas). Pois bem o autor do tal trecho é o alemão Rilke, cuja obra poética eu conheço pouquíssimo diga-se de passagem, mas que ficou marcado na minha vida como o autor do célebre raciocínio segundo o qual um poeta só é poeta de verdade quando não pode prescindir da escrita, sua razão de viver ou morrer. E não que eu queira equivaler-me à altura vertiginosa do "autêntico poeta" pintado por Rilke, mas é que essa tarde eu conclui simplesmente que, quando eu não escrevo, eu apodreço de tédio, na vida pasmaceira que é a vida dos fatos.
Por fim, me ocorre agora que esse preâmbulo talvez seja menos a tentativa de dar conta desse lapso de tempo enorme do que a busca de uma resposta para pergunta que, mesmo inarticulada, sempre se insinua: pra que escrever? Num caso e noutro, as tentativas de explicação racional e ponderada são antes uma forma de falseaar do que de apreender os tácitos motivos que movimentam esses trechos inauditos de nossas vidas íntimas. E isso, caros, já é matéria que ultrapassa os estreitos limites desse esforço de racionalização, para se converter em matéria-prima da Arte e da imaginação. Vamos até elas então.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

DÚVIDA APÓCRIFA: FALAR DE MIM OU NÃO FALAR-ME?

Recentemente, reli uma entrevista concedida pelo cineasta que muito admiro, João Moreira Salles. Nela, Salles fala sobre seu último trabalho, com o qual ele pretende concluir a carreira: o documentário "Santiago", que retrata a vida e as memórias do excêntrico mordomo que trabalhou, durante três décadas, para o diplomata Walter Salles, pai de João. Conforme aponta o autor da matéria (publicada na BRAVO!), o aspecto que ilumina o longa, conferindo-lhe originalidade, é a inserção de uma narrativa em off, feita em primeira pessoa, que revela não apenas os anseios e rememorações do mordomo Santiago, mas do próprio João Salles, que, fugindo da pretensa imparcialidade de diretor, converte-se em personagem do filme. Como o próprio diretor reflete, em certo momento do longa, o seu documentário possui três personagens: Santiago, a casa da Gávea onde o mordomo trabalhou e, por fim, ele mesmo.
Questionado a certa altura da entrevista acerca dessa opção, dissonante em relação aos seus trabalhos anteriores, de expor-se publicamente no filme, João dá uma resposta que, apesar de curta, me pasmou e produziu uma revolução em mim. O documentarista, conhecido por sua discrição, responde que, ao retomar esse projeto outrora abandonado, sua pretensão era menos estética do que pessoal: João pretendia curar-se, sanar, através desse projeto, "as aflições que lhe rondavam a alma". Foi então que, revendo o material coletado há muitos anos, ele conclui que o filme só ganharia verdade, se ele próprio se inserisse como personagem daquela história. É ai que João conclui,numa tirada que me assombrou: "Claro que relutei imensamente à hipótese de me mostrar por saber que um fio muitíssimo tênue separa a auto-exposição do narcisismo. Foi quando li uma declaração do cineasta francês Chris Marker: 'O uso da primeira pessoa num filme equivale a um ato de humildade. Tudo o que tenho a oferecer sou eu mesmo'. Se necessitava de um álibi, acabara de o encontrar"
Essa colocação do cineasta francês, que por ora eu estendo às outras linguagens artísticas, me impressionou muitíssimo, porque me obrigou a rever uma série de ideias já docilmente estabelecidas para mim. Desde muito, eu sou adepta da premissa cabralina "sempre evitei falar de mim,/ falar-me. Quis falar das coisas". Guiada por essa proposição, eu sempre desprezei as poéticas por demais confessionais; sempre vi com reservas os artistas que se elegem como tema central de sua obra; sempre agi com a devida discrição, nos textos que escrevo e até nas conversas que travo, para não me transformar no monstro narcisista, para quem a realidade não é mais do espelho de seus estados de espírito. E foi muito graças a essa convicção que sempre ouvi ao meu respeito comentários que me definem como "fechada", "esnobe", "misteriosa" etc etc etc: e tudo isso só porque, talvez por imaturidade ou por falta de humildade, sempre avaliei o "falar de si" como um excesso narcisista imperdoável.
E agora, graças a um lance de dados que me fez reler essa entrevista há muito esquecida, eu revisito minhas concepções mais arraigadas, para, avançando na compreensão do poema cabralino já citado, também me questionar:
Sempre evitei falar de mim,
Falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
Não haverá um falar de mim?
Devo dizer, portanto, que mesmo sendo perpétua encenação das Outras que estão em mim, eu sou a única matéria, ainda que frágil e tosca, sobre a qual eu me debruço há anos. Eu sou o desconhecido que mais conheço: por que não falar mais de mim então?
Partindo desse questionamento, me proponho então a abandonar a condição de Eu propositadamente devorado por palavras: decidi expor-me e dizer, humildemente, que eu sou tudo o que tenho a oferecer. Que venham as poéticas confessionais, ainda que por vezes disfarçadas de retórica sobre outras coisas ou sobre coisa alguma.

domingo, 4 de abril de 2010

DO COMPLEXO DE ALICE


"Alice no país das maravilhas" do Lewis Carnoll é um clássico na acepção que Italo Calvino adota para o termo: é o tipo de livro que você lê mesmo não tendo lido. Em outras palavras, o enredo dessa obra é tão popular, tão difundido, que você o conhece sem jamais ter lido o texto na íntegra.
Desde criança, eu adoro esse clássico do non-sense e a sua heroína, talvez porque eu,assim como a Alice, vivi muito tempo na toca de um coelho perpetuamente atrasado, em meio a fugura bizarras e sonhos megalômanos. Sempre tive inclinação pra viver em tempos inevntados. Até que eu tomei essa resolução de ano novo de viver mais de acordo com as molduras que delimitam o real comum. Subi da toca do coelho para me enebriar num universo de futilidade e carnificina, que constitui a vida útil e banal.
Pois bem, cansei da experiência: alguém pode me dizer onde fica a passagem que me leva de volta à toca do coelho branco?

SOBRE APRISIONAMENTO, LIBERDADE E CRIAÇÃO


Tive o privilégio de, durante essa semana, assistir ao filme de Julian Schnabel, chamado "O escafandro e a borboleta", que suscitou em mim uma série fragmentada de espantos, epifanias e inquietações, que por ora eu tento traduzir aqui na forma de discurso.
Pois bem, o filme em questão nos apresenta a história real do célebre editor da revista Elle, Jean-Dominique Bauby, que, após sofrer um desastroso derrame, padece da rara doença "locked-in", que lhe imobiliza o corpo quase totalmente. Quase, porque Dominique ainda é capaz de controlar os movimentos de um dos olhos, seu único instrumento de comunicação com o mundo exterior. Apesar dessa súbita restrição de movimentos imposta ao seu corpo, o personagem mantém- se, porém, interiormente ativo e vívido, o que o leva a concluir em dos momentos do filme que, além do olho esquerdo, duas outras coisas não foram imobilizadas pela doença: a memória e a imaginação. E é graças a essas duas faculdades que, a despeito do aprisionamento da matéria, o personagem encontra a redenção espiritual, conseguindo, como nos indica o título metafórico da película, libertar-se do seu escafandro para converter-se em borboleta e alçar voo.
É necessário dizer também que é graças à exploração hábil e sensível dessas faculdades do personagem de rememorar e criar estados e espaços imaginativos que o filme, cuja proposta inicial é apresentar a vida de um homem totalmente imobilizado, ganha uma dinâmica surpreendente, através de uma imagética que multiplica nossas possibilidades de sentir e compreender. E esse é, sem dúvida, um dos grandes méritos do diretor, que conseguiu realizar um projeto inicialmente infilmável.
Na parte inicial do filme, o diretor consegue, através de um hábil manejo da câmera, apresentar o mundo a partir do ponto de vista da personagem. A câmera subjetiva converte-se no olhar de Jean-Dominique: pisca como ele para se comunicar, ver pessoas e espaços da maneira desfocada, lagrimeja com ele. É graças a esse recurso estilístico, não inteiramente novo na história do cinema, que o diretor leva o cinéfilo a vivenciar um pouco da sensação de aprisionamento de seu personagem.
Em um segundo momento do filme, o diretor apresenta-nos o método penoso, desenvolvido pela fonoaudióloga, que permite a Dominique comunicar-se com o mundo exterior: o personagem, diante de uma série de letras ditadas, pisca para escolhê-las e, com elas, formar palavras, frases, páginas inteiras de um relato que se tornou, enfim, no comovente livro de memórias que inspirou a narrativa fílmica. A partir da daí, o monólogo interior, bem marcante no início do filme, começa a dar espaço ao movimento de ida e volta que nos apresenta os eventos da vida passada do personagem e à vertiginosa dinâmica de sua imaginação.
Através do lindo trabalho do diretor Julian Schnabel, nos é dada a conhecer a incrível história de um homem que, através de piscadelas repetivas e de um trabalho penoso de elaboração, cnseguiu realizar um projeto ao qual ele desejava dedicar-se antes do acidente: escreve um livro, realizar uma obra, deixar para o mundo o seu legado. Não é, porém, a primeira vez que o diretor nos apresenta a experiência de aprisionamento como trampolim para o processo criativo: anteriormente, Schanbel já tinha dirigido Basquiat, a biografia do pintor morto por overdose, e "Antes de Anoitecer", a história do poeta Reynaldo Arenas, que sofreu com a AIDS e com uma política repressiva de Cuba.
O escafandro, nesse filme, mudou apenas de ambiência: antes, o aprisionamento e a libertação pela arte foram dados pelas drogas, pela sociedade repressora e pela doença mortal. O escafandro agora é o próprio corpo, imóvel e atrofiado, do protagonista, que encontrou, na arte da escrita, a possibilidae de libertação, inimaginável para o outro Dominique, célebre, um tanto vaidoso, para quem não existiam a derrota ou o fracasso.
O filme é, por fim, de uma imagética bela e de uma proposta poderosa: revelar como converter as contigências culturais, as restrições físicas e emocionais em força propulsora para a criação.

quarta-feira, 17 de março de 2010

(in) definições para Poesia segundo Leminski (e outros)


LIMITES AO LÉU
Paulo Leminski


POESIA: "words set to music" (Dante
via Pound), "uma viagem ao
desconhecido" (Maiakóvski), "cernes e
medulas" (Ezra Pound), "a fala do
infalável" (Goethe), "linguagem
voltada para a sua própria
materialidade" (Jákobson),
"permanente hesitação entre som e
sentido" (Paul Valéry), "fundação do
ser mediante a palavra" (Heidegger),
"a religião original da humanidade"
(Novalis), "as melhores palavras na
melhor ordem" (Coleridge), "emoção
relembrada na tranqüilidade"
(Wordsworth), "ciência e paixão"
(Alfred de Vigny), "se faz com
palavras, não com idéias" (Mallarmé),
"música que se faz com idéias"
(Ricardo Reis/Fernando Pessoa), "um
fingimento deveras" (Fernando
Pessoa), "criticism of life" (Mathew
Arnold), "palavra-coisa" (Sartre),
"linguagem em estado de pureza
selvagem" (Octavio Paz), "poetry is to
inspire" (Bob Dylan), "design de
linguagem" (Décio Pignatari), "lo
impossible hecho possible" (García
Lorca), "aquilo que se perde na
tradução" (Robert Frost), "a liberdade
da minha linguagem" (Paulo
Leminski)..."

terça-feira, 16 de março de 2010

A POÉTICA DO COTIDIANO: as quatro estações de Eric Rohmer


Aos cinéfilos, para os quais a imagem cinematográfica está para além da oferta de entretenimento, o ano de 2010 representou a perda de um dos grandes mestres do cinema de arte contemporâneo: Eric Rohmer. Falecido aos 89 anos, em janeiro, Rohmer foi, ao lado de nomes como François Truffaut e Jean-Luc Godard, um dos cineastas inovadores que compuseram a "Nouvelle Vague", movimento que ajudou a imprimir um novo estilo à narrativa fílmica, nos anos 50.
Há alguns dias, "percorri" o ciclo de filmes que integram, ao lado dos "Contos Morais" e "Comédias e Provérbios", mais uma das célebres séries do cineasta: os "Contos das quatro estações". Essa série, que, sem parecê-lo, associa o ciclo da natureza ao comportamento humano, sintetiza alguns dos aspectos que tornaram único e original o estilo do cineasta francês.
Com sutileza e sensibilidade, Eric Rohmer propõe-se a narrar histórias, a priori, banais, de personagens investidos de tal realismo, que mais parecem pessoas, a cujo desenrolar de dúvidas, angústias e questionamentos o espectador assiste. E é justamente, através desse "banalismo", que Rohmer consegue captar todo o insólito, todo o extraordinariamente poético que envolvem os eventos da vida de seus personagens, dando-lhes abertura para refletir acerca de densas questões filosóficas, como moral, fé e verdade. É assim com a impetuosa Jeanne, a professora de Filosofia do "Conto de outono", para quem o grande mistério é que, mesmo dispondo de dois apartamentos, ao fim de uma festa, ela não tem onde dormir. É assim também com a Felice do "Conto de inverno", que, em meio às atribulações do cotidiano, vivencia o epifânico que é, em alguns instantes, ter toda a sua existência revestida de um repentino e cristalino sentido.
E, nesse desvalamento de mistérios e epifanais, o grande acontecimento dos filmes de Rohmer é que seus personagens pensam, se questionam e se angustiam, justamente porque nunca estão certos de nada: eles nunca sabem a quem devem amar; por quem ou pelo que se interessar; para onde e com quem ir. Já foi dito que, enquanto os personagens, em Hollywood, choram, lutam, espionam, atiram, explodem, correm, os personagens de Rohmer apenas pensam e, para isso, falam. Nos "Contos das quatro estações", os personagens, para invocar o sentido do sentem e do que se enrola à sua volta, tagarelam o todo tempo todo, até que. De repente, o fortuito e o involuntário intervém em suas vidas, confrindo-lhes cores e sentidos novos.
É por isso que, das poéticas e pensantes imagens elaboradas por Eric Rohmer, sempre emerge a revelação do quão milagrosa e emocionante é a vida.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Clarice,


- sempre um (des)encontro vertiginoso -

"Talvez o que tenha me acontecido seja uma compreensão - e que, para eu ser verdadeira, tenho que continuar a não estar à altura dela, tenho que continuar a não entendê-la. Toda compreensão súbita se parece com uma aguda incompreensão.
Não. Toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda imcompreensão. Todo momento de achar é um perder-se a si próprio. Talvez me tenha acontecido uma compreensão tão total quanto uma ignorância, e dela eu venha a sair intocada e inocente como antes"

(LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998)

sábado, 6 de março de 2010

O Ser selvagem da História: a última aventura poética de Virgínia Woolf

A propósito de (re)leitura

Segundo Otto Maria Carpeaux (História da Literatura Ocidental, p.2588), “Virgínia Woolf não precisa de enredo; este é o pretexto para revelar a presença de passados inteiros e mundos inteiros num momento do fluxo de consciência ou subconsciência dos personagens, que não são personagens propriamente ditas e sim aspectos de personagens”. Inserindo-se, assim, no panorama da literatura do século XX, que tem como referência o binômio Proust-Joyce, Virgínia Woolf revolucionou a estrutura da narrativa tradicional, revelando o nomadismo da consciência humana e a precariedade da estrutura mnemônica do tempo.
Com seu último romance, Entre os atos, a escritora londrina encerra brilhantemente sua trajetória literária, apurando os diversos recursos e temas que compuseram sua escritura: a torrente poética que decompõe a linguagem realista; o confronto entre tempo físico e tempo psicológico (ideal); a História como movimento elíptico e não-linear.
Ambientado em 1939, Entre os atos, que transcorre em um dia (a exemplo de Mrs. Dalloway), narra o curso de uma peça teatral, encenada por e para a população de uma pequena localidade da Inglaterra rural.
A peça representada narra, de modo não-contínuo, a História da Inglaterra (e por extensão, da Humanidade), desde seu Nascedouro, atravessando a era de Elizabeth I e seu esplendor, até o fragmentado presente. Nos intervalos, entre os atos da peça, a autora desvela os dramas pessoais daqueles que, outrora platéia, tornam-se personagens da narrativa: Isabella, esposa de Giles Oliver, sente-se atraída pelo fazendeiro Haines, enquanto o marido deseja Mrs. Manresa; o sensível e recalcado artista William Dodge; a religiosa Mrs. Swithin e seu irmão Oliver. Compondo essa galeria de personagens, a Miss Trobe (em certos aspectos, alter-ego de Virgínia) é a autora e diretora do espetáculo que, com poucos recursos e tendo como cenografia o próprio ambiente campestre, se propõe ao audacioso projeto de reconstituir e desconstruir a trama da História.
Ao longo da narrativa, a representação teatral subverte a dialética do tempo histórico e nos revela que Miss Trobe (e também de Virgínia) concebe a História como um movimento descontínuo e sem sentido próprio de situações que se repetem, no espaço liminar e frágil entre selvageria e civilização.
Ao término do espetáculo, Miss Trobe, frustrada, refugia-se solitária em um bar, onde bebe pelo malogro de mais um projeto. Encarnação do artista, fadado ao desassossego de jamais dizer plenamente, senão pelo silêncio, Miss Trobe é também Virgínia Woolf que, após ter implodido os diversos limites da narrativa ficcional, também sai de cena solitária. No seu caso, pela solidão mais aterradora: a Morte.
a sinfonia

em círculos de luz
me escuto
cavalo de som
que transmuta
invólucros de
silêncio

de grades de Ar
o Mundo me orquestra
um Eu que multiplico:
que cada Ser advindo
é (quase)
o traduzir de sua Sombra
num único Instante

ao fim
sob o som de espuma
que ao Tato esvanece
atravesso a fina trama
(vibra
o rasgo de véu
de um lado
a outro)
e me descubro
ao transe:
de onde
a Música é (só)
o porvir
aureolado de
mutismo.

DESCENDO A TOCA DO COELHO

Vasculhando minhas gavetas e, inevitavelmente, deparando-me com uma porção de trechos soltos e textos inacabados, escolhi uma dessas "experiências de escrita", que, sem propósitos ou pretensões, resolvi partilhar (trata-se de um trecho de uma narrativa por ora abandonada)

Virgínia penetra, lenta, na poeira soturna do apartamento: a atmosfera um tanto límpida demais de vestígios de vida, cuja passagem as cortinas cerradas e as janelas herméticas impedem, é já o aviso do despovoamento do espaço. É bem verdade que, excetuando a leve sufocação de espaço fechado aos transbordamentos de ar e luz do dia, dir-se-ia que o despovoamento do lugar, se tal é verdade, é apenas recente ou temporário, hipótese que pode, aliás, ser comprovada pelo próprio leitor, se ele, assim como o faz Virgínia, reparar no livro aberto sobre a mesa próxima à janela semi-aberta, ou melhor seria dizer semi-cerrada, digressões estilísticas essas que, ante a seriedade da cena, só servem para o fastio e a desatenção do leitor. Virgínia repara que, sobre o livro, como um utensílio a quem descobrem outra utilidade, qual seja marcador de páginas, está uma xícara de café, o que também nesse caso é apenas força de expressão, porque sobre o livro está apenas a xícara, do café resta somente o rastro da borra.
É sabido que todo espaço, principalmente se de espaço habitável se trata, é uma das mais contundentes expressões da subjetividade que nele habita e cuja singularidade pode se manifestar numa maneira própria de dispor móveis, combinar cores, preenchimentos e vácuos, motivo pelo qual, muitas vezes, nos dizem mais sobre alguém algumas horas de conhecimento de sua morada que longos dias de convívio ou conversas, principalmente, como é esse o caso, se esse alguém estiver ausente do lugar que habita. E essa talvez tenha sido a motivação taciturna, provavelmente desconhecida da própria Virgínia, que a levou a esse apartamento, não havendo nesse caso a possibilidade de apresentar a velha desculpa, caso alguém a acuse de invasão a domicílio, Estava passando aqui perto e resolvi fazer uma visitinha rápida, mas a dona da casa não estava e fui entrando, entrando pro caso de repente ela chegar, mas acho que talvez demore e eu já estou de saída.
Que não se assombre o leitor do fato de que embora conviva desde a infância com a dona da casa, Virgínia jamais tenha estado nesse apartamento, que não se condene a outra que nem aqui está para se defender, porque a culpa não foi da falta de convites, inúmeras vezes reiterados, mas do comodismo de quem, para evitar qualquer incômodo ou mudança de hábitos, prefere projetar tudo para o futuro, esse tempo-espaço abstrato no qual cabem todos os projetos, palavras e atos irrealizáveis, indizíveis ou improváveis desse outro do qual, ora oposto, ora duplo, somos apenas o reflexo.
A Virgínia o tempo presente concedeu apenas essa visita a ausência que se converteu em proprietária única desse espaço que, ainda que povoado de algum frescor vestigial, tornou-se fóssil de um tempo e presença já inexistentes. A sala, nem tão grande nem tão pequena, é milimetricamente preenchida pela sombra de sofás, cadeiras, aparadores, mesinhas, uma de centro, duas de canto e vasos e jarros e retratos e quadros de diversos tamanhos e, apesar dessa riqueza de ornamentos e contrastes cromáticos, um canto ou uma porção de parede nua insistem em insinuar seus ângulos brancos e assimétricos. Se considerarmos que a antiga dona do apartamento vivia para captar pelos olhos o invisível das coisas, compreenderemos que esse excesso visual é antes o esforço sistemático de uma vida que, exteriormente preenchida pela profusão de eventos, se passou na sombra e em grandes hiatos.
Do lado direito da sala, recorta-se um ambiente que não diríamos independente, porque com a sala se comunica por uma ampla abertura, mas diríamos que, por ser mais recuado e distante de olhares, é um espaço da casa reservado ao regozijo intimo e privado de sua dona. Dirigindo-se a ele, Virgínia vê o espaço pouco amplo em cujo centro repousa uma mesa circular, circundada por uma duas três quatro cinco, cinco cadeiras, que a sexta, repare, está num canto, afastada das outras, servindo de depósito, se é que tal termo se pode aplicar a uma cadeira, visto que o vulgo nomeia de depósito um corpo com profundidade que recebe objetos das mais variadas naturezas, depósito aqui se refere ao sentido mais genuíno de depositar, acumular ou qualquer coisa que o valha, sim, mas como dizíamos, a sexta cadeira, destacada da sua finalidade primordial de servir de assento, serve aqui de depósito de livros e papéis desordenadamente superpostos. A mesa, ao que parece à Virgínia e o leitor há de lhe dar razão, é uma mesa de trabalho, visto que sobre ela cabem dois ou três livros, um aberto, algumas fotografias espalhadas, papéis nos quais dançam desenhos ainda indefinidos, há também um estojo aberto, do qual se derramaram esses lápis e canetas coloridas: possivelmente, ela se dedicava a um projeto gráfico, talvez colagem como sugere esse tubo de cola aqui. Se por esses indícios incontestáveis, conclui-se que essa mesa era o pequeno laboratório de criação da dona da casa, é possível ainda descobrir-lhe outras finalidades, talvez espaço de refeição: um copo de vidro exteriormente suado e há ainda esse pequeno prato e, sobre ele, um negrume carcomido do qual se destaca um leve cheiro de pútrido, é uma maçã, ou melhor seria dizer, o que dela restou.
Em frente à mesa, há uma janela, menor que a da sala, é verdade, mas apenas parcialmente vedada por cortinas: talvez por isso, nesse cômodo, os objetos parecem revolver-se em uma presença nova, essa frincha de luz, esses vestígios de lugar tão intimamente vivido talvez levem esses móveis, as paredes, o ar que entre tudo circula, a adquirir essas feições um tanto cú,plices. Esse barulho, leitor, é Virgínia que o produz, abrindo a janela cujos trilhos estão um tanto enferrujados, Serão já os primeiros efeitos da ausência da dona?, e o dia lá fora é só essa claridade oca dançando sobre os transeuntes. Do lado oposto à janela, agora surge da sombra uma prateleira de madeira clara, mais alta que larga, ornada de tomos, velhos novos sobre arte teatro música culinária romances dois ou três best-sellers, todos dispostos sem nenhum critério lógico de autoria temática ou data de aquisição: ao lado, vejam, essa cadeira de balanço branco de estofado vermelho, anacronicamente disposta em meio a móveis de design tão moderno. Impossível resistir à tentação de repousar em seu dorso largo e rubro em que agora vemos Virgínia sentada. E se o leitor, pelo enfado da descrição ou desinteresse da leitura, ainda não estiver desistido de reparar bem, verá que Virgínia tem nas mãos um álbum que estivera antes no lugar que o seu corpo agora ocupa. O álbum ao que parece é o testemunho do trabalho penoso a que se dedicou a dona da casa de capturar em centésimos de descuidados segundos toda a vida toda a sorte de penas e lembranças de qualquer que seja a coisa, objeto ou sujeito, vazio ou paisagem, monumento ou caco, o que desmente a opinião do vulgo de que fotografar é a mais simplória das atividades, visto que, com um enquadramento adequado e um simples clique, tem-se instantaneamente um recorte miniatural da realidade, a cuja perfeição nenhum pintor, mesmo se se tratar dos mais representacionistas entre todos , é capaz de chegar. Lê-se nesse álbum uma série de fotos do mesmo objeto, às vezes, como essas quinze páginas consecutivas de um mesmo pôr-do-sol -ou melhor seria supor de um nascer de sol, o leitor que se resolva- cuja diferença é tão sutil que só os mais habituados ao exame das percepções repararão que entre a décima e a décima primeira fotografia, há uma diferença de enquadramento, e entre essa e as cinco próximas, há uma diferença cromática que ora acentua ora suaviza a linha do horizonte.
É verdade que há também fotografias que destoam dessa intenção mais elevada de orientar nossos olhos para a descoberta de outras camadas ou texturas daquilo que pelo hábito percebemos sempre como o Mesmo, e que é missão do artista, se de Artista se tratar a pessoa da qual falamos, redescobrir no Mesmo o Outro de si. Há, no álbum, a revelação de que, por mais que isso pese aos idealistas, nem só do que a mente do Artista inventa vive um homem, mas também de todo o trabalho que provém de suas hábeis mãos e seu suado rosto: uma série de fotografias de casamentos batizados noivados aniversários casamentos aniversários de casamento inauguração de restaurante festa a fantasia baile de carnaval lançamento de livros estreia de peças e, enfim, todas as prováveis e improváveis festas ritos e cerimônias já elaboradas pela civilização ocidental contemporânea. E não é, certamente, com pretensões sociológicas de estudo das práticas festivas de nossa sociedade que essas fotografias aqui se reúnem, mas pelo motivo mais que evidente de que num mundo como o nosso ser artista não é atividade rentável para saciar as necessidades vontades e vaidades do corpo.
Penetrando, por fim, nesse reino mais soturno e desconhecido da criação, ao mesmo tempo, o mais ignorado e o mais revelador, qual seja, o da rasura, o do resto, o da tentativa e do erro, Virgínia percebe no centro do álbum uma peça como que solta, mais espessa que uma fotografia. Trata-se de um espelho e sob ele uma fotografia, essa, por fim, destoante de todo o resto, nem arte nem trabalho, apenas um ponto morto do passado que se cristalizou. Na fotografia, flutuam os sorrisos indecisos de duas adolescentes....

domingo, 10 de janeiro de 2010



Bela aimagem do que simboliza "ser Poeta" por Charles Baudelaire
poema extraído da obra Les Fleurs du Mal)

L'albatros

Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albratos, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les grouffres amers.

A peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de lázur, maladroits et honteux,
Comme des avirons traîner à côte d'eux.

Ce voyageurs ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid!
L'un agace son bec avec un brûle-gueule,
L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait!

Le Poëte est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.


(Tradução por Ivan Junqueira)

Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.

Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.

Antes tão belo, como é feio em desgraça
Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!

O Poeta se compara ao príncipe da altura
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado no chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.