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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

TRÊS TEXTOS EXECUTADOS DURANTE O ANO SABÁTICO: poema III


arquiteturas do acaso

quando quase criança entre
tinha-se com palíndromos ava
lovara acaso seus desastres não
avançavam já léguas sua
arquitetura imprevista?, e
mesmo agora no esforço des
atento de agarrar-se a
quantos tomos de civil sub
existem rumores de roldanas
e tilintar de andaimes. ou
acaso se pode prever o ritmo
sonolento se no centro da
trama inverte-se insuspeito o pó
em sangue, o sangue-em-pó?
Acaso? e acaso alguém
sabe dos gestos que des
percebidos se instalam entre os
esqueletos dos dias
até escarnecerem grafite ao
alcance da voz? não
não se fabricam desertos entre
a vertigem dos prédios não se
parem flautas nas entranhas
citadinas. e seu pendor para
engenharia nunca foi muito:
então fizera-se falsária dos im
perceptíveis arquejos ainda que
frequentemente aparada de
brocas e martelos.

TRÊS TEXTOS EXECUTADOS DURANTE O ANO SABÁTICO: poema II



uma genealogia by bartleby

impossível prever a cifra de
acidentes que um barteby
é capaz de desencadear.
numa curva, ponte ou
abismo: rompe-se perplexo!
o fio entre
dia e iminência de aurora, e as
horas apenas excedem a geografia
dos relógios. agora mesmo marcel
estaca para (lânguido) assistir pássaros
regurgitando das árvores. a lua
desenha a porta de casa e ele
ainda nem sabe, mas a urdidura
semeou-lhe o dente. o primeiro.
impossível calcular o momento:
enquanto despe os tomos de
contabilidade, a margem de erro
já avança além das fronteiras,
o horizonte.
ante o prato de ovos fritos marcel
não sabe, e mesmo agora lhe é
impossível
medir a espessura da fome.



P.S.: O quadro acima se itutla The poor poet, de autoria do alemão Carl Spitzweg
(1808- 1885)

TRÊS TEXTOS EXECUTADOS DURANTE O ANO SABÁTICO: poema I

A dobra

olhando-a (nesse instante)
pelo retrovisor. ela, distante
mil léguas. a jean-paul
ocorre (súbito!) que essa
dobra eu-e-outrem é
mesmo o insuperável anula
mento. mais:
(se) a mesma dobra esteve
(sempre?) ocultamente
palpável no des
dobra
mento de Si:

aqui, e simples
mente: Jean-Paul decalca-se
cristalino, na superfície d’a
manhã.

O ANO SABÁTICO

A longa pausa entre a postagem anterior e essa mais recente é o resultado, dentre outros motivos,do meu convencimento, ainda que temporário, de que eu não sei escrever ou de que não há nada a ser dito que não o tenha sido por gente infintitamente melhor do que eu.
Mas então eis que hoje, numa das minhas corriqueiras crisisnhas existenciais, vem à superfície, trazido não sei por que acaso, o trecho de um livro lido há tanto tempo que eu imaginava que todas as suas impressões, na época da leitura tão intensas, tivessem esmaecido sob o tumulto de impressões e lembranças mais recentes (o que mais uma vez mostra que o Proust tem razão quando fala da memória involuntária, aquela memória que, por um objeto ou sensação insuspeita, pode de repente desenrolar o torvelinho das nossas lembranaças mais recônditas). Pois bem o autor do tal trecho é o alemão Rilke, cuja obra poética eu conheço pouquíssimo diga-se de passagem, mas que ficou marcado na minha vida como o autor do célebre raciocínio segundo o qual um poeta só é poeta de verdade quando não pode prescindir da escrita, sua razão de viver ou morrer. E não que eu queira equivaler-me à altura vertiginosa do "autêntico poeta" pintado por Rilke, mas é que essa tarde eu conclui simplesmente que, quando eu não escrevo, eu apodreço de tédio, na vida pasmaceira que é a vida dos fatos.
Por fim, me ocorre agora que esse preâmbulo talvez seja menos a tentativa de dar conta desse lapso de tempo enorme do que a busca de uma resposta para pergunta que, mesmo inarticulada, sempre se insinua: pra que escrever? Num caso e noutro, as tentativas de explicação racional e ponderada são antes uma forma de falseaar do que de apreender os tácitos motivos que movimentam esses trechos inauditos de nossas vidas íntimas. E isso, caros, já é matéria que ultrapassa os estreitos limites desse esforço de racionalização, para se converter em matéria-prima da Arte e da imaginação. Vamos até elas então.