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domingo, 4 de abril de 2010

SOBRE APRISIONAMENTO, LIBERDADE E CRIAÇÃO


Tive o privilégio de, durante essa semana, assistir ao filme de Julian Schnabel, chamado "O escafandro e a borboleta", que suscitou em mim uma série fragmentada de espantos, epifanias e inquietações, que por ora eu tento traduzir aqui na forma de discurso.
Pois bem, o filme em questão nos apresenta a história real do célebre editor da revista Elle, Jean-Dominique Bauby, que, após sofrer um desastroso derrame, padece da rara doença "locked-in", que lhe imobiliza o corpo quase totalmente. Quase, porque Dominique ainda é capaz de controlar os movimentos de um dos olhos, seu único instrumento de comunicação com o mundo exterior. Apesar dessa súbita restrição de movimentos imposta ao seu corpo, o personagem mantém- se, porém, interiormente ativo e vívido, o que o leva a concluir em dos momentos do filme que, além do olho esquerdo, duas outras coisas não foram imobilizadas pela doença: a memória e a imaginação. E é graças a essas duas faculdades que, a despeito do aprisionamento da matéria, o personagem encontra a redenção espiritual, conseguindo, como nos indica o título metafórico da película, libertar-se do seu escafandro para converter-se em borboleta e alçar voo.
É necessário dizer também que é graças à exploração hábil e sensível dessas faculdades do personagem de rememorar e criar estados e espaços imaginativos que o filme, cuja proposta inicial é apresentar a vida de um homem totalmente imobilizado, ganha uma dinâmica surpreendente, através de uma imagética que multiplica nossas possibilidades de sentir e compreender. E esse é, sem dúvida, um dos grandes méritos do diretor, que conseguiu realizar um projeto inicialmente infilmável.
Na parte inicial do filme, o diretor consegue, através de um hábil manejo da câmera, apresentar o mundo a partir do ponto de vista da personagem. A câmera subjetiva converte-se no olhar de Jean-Dominique: pisca como ele para se comunicar, ver pessoas e espaços da maneira desfocada, lagrimeja com ele. É graças a esse recurso estilístico, não inteiramente novo na história do cinema, que o diretor leva o cinéfilo a vivenciar um pouco da sensação de aprisionamento de seu personagem.
Em um segundo momento do filme, o diretor apresenta-nos o método penoso, desenvolvido pela fonoaudióloga, que permite a Dominique comunicar-se com o mundo exterior: o personagem, diante de uma série de letras ditadas, pisca para escolhê-las e, com elas, formar palavras, frases, páginas inteiras de um relato que se tornou, enfim, no comovente livro de memórias que inspirou a narrativa fílmica. A partir da daí, o monólogo interior, bem marcante no início do filme, começa a dar espaço ao movimento de ida e volta que nos apresenta os eventos da vida passada do personagem e à vertiginosa dinâmica de sua imaginação.
Através do lindo trabalho do diretor Julian Schnabel, nos é dada a conhecer a incrível história de um homem que, através de piscadelas repetivas e de um trabalho penoso de elaboração, cnseguiu realizar um projeto ao qual ele desejava dedicar-se antes do acidente: escreve um livro, realizar uma obra, deixar para o mundo o seu legado. Não é, porém, a primeira vez que o diretor nos apresenta a experiência de aprisionamento como trampolim para o processo criativo: anteriormente, Schanbel já tinha dirigido Basquiat, a biografia do pintor morto por overdose, e "Antes de Anoitecer", a história do poeta Reynaldo Arenas, que sofreu com a AIDS e com uma política repressiva de Cuba.
O escafandro, nesse filme, mudou apenas de ambiência: antes, o aprisionamento e a libertação pela arte foram dados pelas drogas, pela sociedade repressora e pela doença mortal. O escafandro agora é o próprio corpo, imóvel e atrofiado, do protagonista, que encontrou, na arte da escrita, a possibilidae de libertação, inimaginável para o outro Dominique, célebre, um tanto vaidoso, para quem não existiam a derrota ou o fracasso.
O filme é, por fim, de uma imagética bela e de uma proposta poderosa: revelar como converter as contigências culturais, as restrições físicas e emocionais em força propulsora para a criação.

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