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segunda-feira, 5 de abril de 2010

DÚVIDA APÓCRIFA: FALAR DE MIM OU NÃO FALAR-ME?

Recentemente, reli uma entrevista concedida pelo cineasta que muito admiro, João Moreira Salles. Nela, Salles fala sobre seu último trabalho, com o qual ele pretende concluir a carreira: o documentário "Santiago", que retrata a vida e as memórias do excêntrico mordomo que trabalhou, durante três décadas, para o diplomata Walter Salles, pai de João. Conforme aponta o autor da matéria (publicada na BRAVO!), o aspecto que ilumina o longa, conferindo-lhe originalidade, é a inserção de uma narrativa em off, feita em primeira pessoa, que revela não apenas os anseios e rememorações do mordomo Santiago, mas do próprio João Salles, que, fugindo da pretensa imparcialidade de diretor, converte-se em personagem do filme. Como o próprio diretor reflete, em certo momento do longa, o seu documentário possui três personagens: Santiago, a casa da Gávea onde o mordomo trabalhou e, por fim, ele mesmo.
Questionado a certa altura da entrevista acerca dessa opção, dissonante em relação aos seus trabalhos anteriores, de expor-se publicamente no filme, João dá uma resposta que, apesar de curta, me pasmou e produziu uma revolução em mim. O documentarista, conhecido por sua discrição, responde que, ao retomar esse projeto outrora abandonado, sua pretensão era menos estética do que pessoal: João pretendia curar-se, sanar, através desse projeto, "as aflições que lhe rondavam a alma". Foi então que, revendo o material coletado há muitos anos, ele conclui que o filme só ganharia verdade, se ele próprio se inserisse como personagem daquela história. É ai que João conclui,numa tirada que me assombrou: "Claro que relutei imensamente à hipótese de me mostrar por saber que um fio muitíssimo tênue separa a auto-exposição do narcisismo. Foi quando li uma declaração do cineasta francês Chris Marker: 'O uso da primeira pessoa num filme equivale a um ato de humildade. Tudo o que tenho a oferecer sou eu mesmo'. Se necessitava de um álibi, acabara de o encontrar"
Essa colocação do cineasta francês, que por ora eu estendo às outras linguagens artísticas, me impressionou muitíssimo, porque me obrigou a rever uma série de ideias já docilmente estabelecidas para mim. Desde muito, eu sou adepta da premissa cabralina "sempre evitei falar de mim,/ falar-me. Quis falar das coisas". Guiada por essa proposição, eu sempre desprezei as poéticas por demais confessionais; sempre vi com reservas os artistas que se elegem como tema central de sua obra; sempre agi com a devida discrição, nos textos que escrevo e até nas conversas que travo, para não me transformar no monstro narcisista, para quem a realidade não é mais do espelho de seus estados de espírito. E foi muito graças a essa convicção que sempre ouvi ao meu respeito comentários que me definem como "fechada", "esnobe", "misteriosa" etc etc etc: e tudo isso só porque, talvez por imaturidade ou por falta de humildade, sempre avaliei o "falar de si" como um excesso narcisista imperdoável.
E agora, graças a um lance de dados que me fez reler essa entrevista há muito esquecida, eu revisito minhas concepções mais arraigadas, para, avançando na compreensão do poema cabralino já citado, também me questionar:
Sempre evitei falar de mim,
Falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
Não haverá um falar de mim?
Devo dizer, portanto, que mesmo sendo perpétua encenação das Outras que estão em mim, eu sou a única matéria, ainda que frágil e tosca, sobre a qual eu me debruço há anos. Eu sou o desconhecido que mais conheço: por que não falar mais de mim então?
Partindo desse questionamento, me proponho então a abandonar a condição de Eu propositadamente devorado por palavras: decidi expor-me e dizer, humildemente, que eu sou tudo o que tenho a oferecer. Que venham as poéticas confessionais, ainda que por vezes disfarçadas de retórica sobre outras coisas ou sobre coisa alguma.

2 comentários:

  1. Li esses versos de Cabral hoje, na ufma =)
    Lembrei de vc, pq eu estava no auditório B... Senti o mesmo nervoso daquele dia em que nós lemos o conto de Poe.

    Vi seu nome na lista da Fuvest e soube que vc estava indo morar com o seu pai. Fiquei muito, muito feliz; já te falei várias vezes o quanto acredito no seu potencial, e também sinto que fora daqui, vc vai se desenvolver muito mais!

    Continue expondo o seu eu, que é lindo demais :)

    Mas não deixe de dar notícias pra nós que ficamos aqui, saudosos...

    beijo!

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  2. Em tempos de blogs, orkut, facebook e twitter, estamos sujeitos a uma super exposição virtual. Se por um lado o receptor ganha voz, se torna agente ativo da mensagem e se alça na condição de emissor, por outro ele assume maior responsabilidade com o seu discurso. Dialogar com o mundo é superar as própria idiossincrasias sem perder a própria identidade.

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